“ O homem é formado por uma multidão de egos”
“ não seria mais que espumas boiando no mar,
ondulação sem sentido
nas torrentes dos acontecimentos”
“ fizera alguns buracos
na rede do tempo
e da realidade ilusória”
Herman Hesse - Escritor Alemão
trechos de - O lobo da estepe
Narciso e Goldmund
Só depois de ter vivido as alegrias e as dores de todas as paixões, depois de ter
experimentado o amor, a luxúria, a fome, a peste, a guerra, o crime, o medo e a
coragem, o egoísmo e a abnegação, depois de haver explorado a carne e o espírito
de inúmeras mulheres – habitado por uma ânsia de ilimitação, mesmo na entrega
mais veemente –
só então Goldmundo logra materializar numa obra de arte o seu
ideal de beleza: esse rosto de uma virgem, que é a síntese maravilhosa de tudo o
que ele amou, de todas essas mulheres que desvendou, a quem fez sofrer e por
quem sofreu para as conhecer, e até do sol e da lua, das florestas e do vento,
porque semelhante rosto será, em última análise, uma imagem da totalidade, e
para a totalidade tende todo o misticismo estético de
Hermann Hesse.
Sendo, aliás, como o é, quase toda a sua obra um longo diálogo interior entre os
duplos, em Narciso e Goldmundo Hesse encarna nas duas personagens, que
exprimem os elementos apolíneo e dionisíaco, ou mais precisamente, o intelectual
Narciso a dignidade da solidão e da reserva, as satisfações do ensimesmamento e
a escureza das suas funduras; o intuitivo Goldmundo o entusiasmo, a vertigem da
sensação, a procura do belo pela experiência exterior, a busca inconsciente da
infância perdida, o regresso à origem.
Nesse
grande afresco da Idade Média que é o romance Narciso e Goldmundo, não há
qualquer veleidade de reconstituição arqueológica, mas antes um palpitante
bosque de símbolos, ao mesmo tempo que uma aprendizagem da vida e a descoberta
dos mecanismos do pensamento e da arte, enfim reunidos na conjunção das
existências paralelas, porém tão distantes, do frade e do escultor.
A própria
biografia de Hermann Hesse apresenta traços comuns com a dupla experiência de
Narciso e Goldmundo. Destinado pelos pais à carreira teológica, Hesse
fez os
seus estudos nos seminários de
Maulbronn e de
Tubinga. Se é certo que não teve a
vida errante de Goldmundo, o seu temperamento paradoxal apetecia tanto a glória
dos sentidos como o retiro, as cinzas e os veludos da interioridade, com o seu
orgulho, os seus pélagos sombrios.
Mas num e noutro 'modo' tentando sempre
realizar a personalidade livre e autêntica, capaz de se ver sem se mirar, de se
julgar sem comprazimento, É dessa dualidade, com o seu consequente apetite de
unidade, que nasce a força da obra de Hermann Hesse, em que a amizade viril (e
através dela a dialética dos contrários) desempenha um papel primordial,
superado pelo desdobramento do 'eu' em Ele e o Outro (Klein und Wagner).
Certas ideias mestras insistentemente se repetem na sua novelística, que
pretende apresentar-nos sempre, em ação e em reflexão, as chaves da existência.
Tal o motivo da morte na água, com o seu significado de retorno à mãe, da qual
sobretudo o artista, aquele que força as portas do mistério pelo conhecimento
sensível, nunca se aparta – e por isso torna as obscuras exigências da carne em
beleza, em esclarecimento do que existe.
Marcado desde muito jovem pela sabedoria oriental e pela
atmosfera pietista da sua ascendência de pastores protestantes, depois pela sua
visita à Índia, facilmente se explica o seu pacifismo durante a guerra de
1914-18, que lhe valeu as primeiras perseguições nessa Alemanha de que ele,
entretanto, representa, mau grado o pudor e a ironia latentes em tantas das suas
mais delicadas e lúcidas páginas, o melhor espírito romântico, com tudo o que
implica de imensidade de aspirações. Por isso
Demian é um dos romances
mais formosos e mais europeus do nosso século e o Nobel premiou com inteira
justiça a obra romanesca de Hermann Hesse.
Inteiramente cônscio da importância das vozes discordantes,
o autor de Peter Camenzind previu, com náusea e pavor, os desmedimentos
do hitlerismo, os seus atentados à liberdade. Testemunho dessa sua atitude são
alguns dos artigos de Frieden und Krieg.
Durante o regime nazi, os
escritos de Hermann Hesse foram proibidos na Alemanha e impressos na Suíça, onde
de há muito ele habitava, tendo acabado por adotar a nacionalidade helvética.
Não obstante, nada mais alemão, no bom sentido, como obra de cultura, do que a
sua fantástica Viagem
no Oriente, impregnada toda ela desse amor do
mágico tão caro à psique germânica e onde, na interpretação da vida e do sonho,
se dão as mãos, em inesperada farândola, figuras da mitologia e da literatura de
que ele próprio provém, desde
Heinrich von Ofterdingen ao alquimista Lindhorst,
até às criações da sua própria mente, que à beira dele permanecem para além do
romance concluso.
A interdependência de todas as coisas em relação ao cosmos é
talvez a cúpula da ficção, não muito extensa, de Hermann Hesse, graduada e
sintonizada em esforço de procura e revelação. Da disponibilidade de Goldmundo,
da tensão de Klein em busca de um 'si' não atraiçoado, do choque de ambos com um
elemento água-mãe-paz, tira-se a dupla lição de uma conquista poética, frustrada
ou não, de unidade – até de re-união –, e de libertação do indivíduo, de assunção
de uma autenticidade comprometida.
Sempre, de resto, Hermann Hesse,
individualista à l' outrance, se opôs ao aniquilamento do homem,
apresentando, contra o carneirismo que submergiu a Alemanha dos anos 30 e 40, a
consciência de si, o Eigensinn, suprema virtude, no seu ver, que só
escuta e respeita o 'si'.
Não quis Hermann Hesse, após a guerra que derruiu os valores
anti-humanos do nazismo, tomar posições políticas, nem optou por qualquer das
Alemanhas divididas. Confinado, porém, na sua arte e defendendo do mundo a sua
intimidade, permaneceu, até ao fim, Narciso-Goldmundo, velador da beleza como
descoberta pessoal, encontro com as fontes genesíacas e participação no sublime
– solidário entanto que solitário, como poderia dizer
Albert Camus, seu parente
de espírito.
http://www.delfimsantos.net/manuela/UTR_Narciso-Goldmundo.htm
Leia também:
Demian
Siddharta
O lobo da estepe
Peter Camenzind