“ O primeiro alimento é a palavra. Da concepção ao nascimento ela agasalha, reconforta, acarinha, (...)
Com sua marca indelével nos lembra o silêncio dos entardeceres. Destino, punhal suspenso na esquina do coração. Estrela que se esqueceu de nascer.
A palavra é pulsante, ardilosa em suas teias de horizonte, difícil domá-la na arena do papel.
Doce de chuchu lambuza a alma? Um bule esmaltado fareja as manhãs? Lâminas de sal ferem? A pele do tempo sufoca? Que pássaros migram dos olhos da amada? Um céu de infinitos possui tímpanos de prazer? E as roupas sonolentas nos varais, quem as terá colocado? Os dados da angustia prevalecem? Quem fez o laço dos moinhos e deitou no ventre das pedras? A tarde é uma interrogação?
O grão se faz á medida para que a palavra exploda e o menor de seus fragmentos é vida.
Que pode oferecer o que trabalha a palavra, a não ser a própria palavra retransformada em casa, beijo, prego, anzol ou pedra de rio?
A palavra arde; a palavra fere, mastiga, tritura; a palavra brota; a palavra é grão; a palavra explode em veludo.
Carpir silencioso onde sequer a voz alcança, ventre onde o som debulha notas de trigo, a palavra gera.
Seremos dignos dela?
Surgem, as palavras, nas horas mais estranhas. Numa fria madrugada me acordam, me sacodem e dizem: Levanta-te e anda! E que faço senão obedecê-las? Tiritando, saio atrás de caneta e papel para registrá-las. No ônibus, na fila do Detran, na corrida no parque. Quando menos prevenido me encontro elas me encontram. (...)
Em outros momentos eu a procuro em desatino e ela não se revela. Busco a palavra certa para completar a frase perfeita e ela se esconde. E ela, feito mulher bonita e desejada, se enche de brios, se faz de gostosa, de difícil, e não cede. Sofrer por ela é quase como sofrer por um amor impossível.
Eu, palavrador, tenho feito delas uma companhia de muitas e muitas horas, entre um cálice de vinho e um concerto de Bach. Tenho, com elas, uma luta cotidiana. Com várias derrotas e algumas vitórias. Que as palavras, caros leitores, não se rendem por qualquer elogio. Não se entregam a um simples toque de dedos. São orgulhosas, as palavras. Conhecem o seu valor. Maravilhosamente carinhosas, as palavras, quando sabemos conquistá-las.
Elas se divertem com os escritores que pensam que as têm em seu poder. Riem daqueles que imaginam que elas estão a sua disposição em qualquer circunstância.
Mas se deliciam com os que entendem que uma palavra não é feita tão somente de símbolos e caracteres, mas que elas contêm segredos e artimanhas. Uma palavra, caros amigos, possui alma. Perversa com quem a desdenha; generosa com quem desvenda sua intimidade.
Eu, no meu ofício a respeito. Essa que se entrega e se deixa burilar, diamantemente esplendida e luminosa, por tantos escritores, o que me causa inveja. Essa que, de vez em quando, pousa em mim cheia de encantamento.
(...) a frase salta num repente e me toma, toda métrica e ritmo: Levantar-se a tempo de acordar o sol. Caminha até o banco e comigo retorna, grudenta sanguessuga, até que a faço repousar em um bloco.
É assim que se faz. Nada de magia, fórmulas milagrosas, inspiração divina, yoga, mentalização ou similar. Apenas, sensibilidade, imaginação e trabalho, muito trabalho.
A diferença entre uma pessoa dita normal e outra criativa é que esta possui, de forma pura e simples, percepção mais acurada, ou, conforme as palavras de Szent-Gyorgyi, essa pessoa possui a capacidade de ver o que todo mundo vê e pensar o que ninguém pensou.
Assim se escreve. Você lê, e muito; é imaginativo, observador; freqüenta ou não oficinas de literatura. Não mais que de repente, surge-lhe a idéia, o desenho dos personagens, o desenrolar da ação, o clímax. A sua frente o computador, a máquina datilográfica ou, simplesmente, o papel em branco e a esferográfica.
Em você, a receita e a técnica se complementam. E você as segue, minuciosamente, livro a livro. O resultado, claro, é encantador e merece aplausos. Mas (e como é importante este mas) se além de tudo você for um transgressor e possuir impetuosidade, destempero, ousadia, indignação, ao agregá-los à técnica atinge o nirvana.
Se definir o seu próprio idioma, haverá de transformar peixes em estrelas. E quando decifrar a alquimia das palavras, sem se preocupar em transformá-las, as transformará de forma tal e tão brilhante que haverá de se perpetuar. (Talvez o sucesso não aconteça de imediato. Normal. Mas você é daqueles a quem o vento não dobra, vaso que não se quebra à primeira queda; você tem consciência de seu talento e, por isso, e por outros tantos motivos, há de perseverar. Bravos! Com toda a certeza que a vida permite, você o alcançará).
Escrever é um dom, segundo Domingos Pellegrini; não é mérito pessoal, mas herança humanitária. Honrar este dom com trabalho e ética, como em qualquer atividade humana, é o grande mérito.
Alguns o conseguem, outros não. Àqueles, seja qual for o grau, é dado olhar o pôr-do-sol através da tempestade. Meter as mãos no barro e transformá-lo em tulipas.
Redescobrir a vida e sua melodia. Perceber a sutileza do espanto e empalmá-lo. Destravar o carro e deixá-lo ao sabor das correntezas sentindo o vento cortar a pele, certos de que, ao fim e ao cabo, haverá, sempre haverá, a magia das palavras e o deslumbre de quem prova e sente o maravilhoso sabor de cada um de todos os dias.
Alguém se habilita? (...)"
Texto de - Sergio Napp - Escritor Brasileiro