sábado, 17 de novembro de 2018

Liberdade








                        para as visitas que não vieram 
neste domingo cinzento
 com sacolas de poncãs
 feito sóis doces e alaranjados...





Liberdade


Nos meus cadernos de escola
Nesta carteira nas árvores
Nas areias e na neve
Escrevo teu nome


Em toda página lida
Em toda página branca
Pedra sangue papel cinza
Escrevo teu nome


Nas imagens redouradas
Na armadura dos guerreiros
E na coroa dos reis
Escrevo teu nome


Nas jungles e no deserto
Nos ninhos e nas giestas
No céu da minha infância
Escrevo teu nome


Nas maravilhas das noites
No pão branco da alvorada
Nas estações enlaçadas
Escrevo teu nome


Nos meus farrapos de azul
No tanque sol que mofou
No lago lua vivendo
Escrevo teu nome


Nas campinas do horizonte
Nas asas dos passarinhos
E no moinho das sombras
Escrevo teu nome


Em cada sopro de aurora
Na água do mar nos navios
Na serrania demente
Escrevo teu nome


Até na espuma das nuvens
No suor das tempestades
Na chuva insípida e espessa
Escrevo teu nome


Nas formas resplandecentes
Nos sinos das sete cores
E na física verdade
Escrevo teu nome


Nas veredas acordadas
E nos caminhos abertos
Nas praças que regurgitam
Escrevo teu nome


Na lâmpada que se acende
Na lâmpada que se apaga
Em minhas casas reunidas
Escrevo teu nome


No fruto partido em dois
de meu espelho e meu quarto
Na cama concha vazia
Escrevo teu nome


Em meu cão guloso e meigo
Em suas orelhas fitas
Em sua pata canhestra
Escrevo teu nome


No trampolim desta porta
Nos objetos familiares
Na língua do fogo puro
Escrevo teu nome


Em toda carne possuída
Na fronte de meus amigos
Em cada mão que se estende
Escrevo teu nome


Na vidraça das surpresas
Nos lábios que estão atentos
Bem acima do silêncio
Escrevo teu nome


Em meus refúgios destruídos
Em meus faróis desabados
Nas paredes do meu tédio
Escrevo teu nome


Na ausência sem mais desejos
Na solidão despojada
E nas escadas da morte
Escrevo teu nome


Na saúde recobrada
No perigo dissipado
Na esperança sem memórias
Escrevo teu nome


E ao poder de uma palavra
Recomeço minha vida
Nasci pra te conhecer
E te chamar

Liberdade



[Liberté.Paul Éluard, “Liberdade | Liberté”. 
tradução Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira 
em “Antologia de Poetas Franceses do Século XV ao Século XX”.
 [organização JR. R. Magalhães]. Rio de Janeiro: Gráfica Tupy, 1950.]









    Um anjo emergiu do mar
    era transparência
    redemunho
    a relampejar
    súbito temporal urdido
    __________único rumor
    storm.
    *
    *
    *
    |_ESTÉTICA DA TEMPESTADE ////

    das páginas de Jussara Salazar

Lúcida Noite





A imagem pode conter: uma ou mais pessoas



Lúcida noite
Carrega tochas
São seus sóis 
Vermelho ouro céus


Lúcida noite
O pássaro a ave
Derrama azuis
Viça o manto claro


Que a noite será sempre 
A mulher derradeira
Seus ombros braços
Seus olhos de futuro

*
*
*
|_as marias /// img tema laura balombini_|

das páginas de Jussara Salazar





sexta-feira, 9 de novembro de 2018

História de um cão











Eu tive um cão. Chamava-se Veludo:
Magro, asqueroso, revoltante, imundo,
Para dizer numa palavra tudo
Foi o mais feio cão que houve no mundo

Recebi-o das mãos dum camarada.
Na hora da partida, o cão gemendo
Não me queria acompanhar por nada:
Enfim - mau grado seu - o vim trazendo.

O meu amigo cabisbaixo, mudo,
Olhava-o ... o sol nas ondas se abismava....
«Adeus!» - me disse,- e ao afagar Veludo
Nos olhos seus o pranto borbulhava.

«Trata-o bem. Verás como o rasteiro
Te indicará os mais sutís perigos;
Adeus! E que este amigo verdadeiro
Te console no mundo ermo de amigos.»

Veludo a custo habituou-se à vida
Que o destino de novo lhe escolhera;
Sua rugosa pálpebra sentida
Chorava o antigo dono que perdera.

Nas longas noites de luar brilhante,
Febril, convulso, trêmulo, agitado
A sua cauda - caminhava errante
A luz da lua - tristemente uivando

Toussenel: Figuier e a lista imensa
Dos modernos zoológicos doutores
Dizem que o cão é um animal que pensa:
Talvez tenham razão estes senhores.

Lembro-me ainda. Trouxe-me o correio,
Cinco meses depois, do meu amigo
Um envelope fartamente cheio:
Era uma carta. Carta! era um artigo

Contendo a narração miuda e exata
Da travessia. Dava-me importantes
Notícias do Brasil e de La Plata,
Falava em rios, árvores gigantes:

Gabava o steamer que o levou; dizia
Que ia tentar inúmeras empresas:
Contava-me também que a bordo havia
Mulheres joviais - todas francesas.

Assombrava-me muito da ligeira
Moralidade que encontrou a bordo:
Citava o caso d’uma passageira...
Mil coisas mais de que me não recordo.

Finalmente, por baixo disso tudo
Em nota breve do melhor cursivo
Recomendava o pobre do Veludo
Pedindo a Deus que o conservasse vivo.

Enquanto eu lia, o cão tranquilo e atento
Me contemplava, e - creia que é verdade,
Vi, comovido, vi nesse momento
Seus olhos gotejarem de saudade.

Depois lambeu-me as mãos humildemente,
Estendeu-se a meus pés silencioso
Movendo a cauda, - e adormeceu contente
Farto d’um puro e satisfeito gozo.

Passou-se o tempo. Finalmente um dia
Vi-me livre d’aquele companheiro;
Para nada Veludo me servia,
Dei-o à mulher d’um velho carvoeiro.

E respirei! «Graças a Deus! Já posso»
Dizia eu «viver neste bom mundo
Sem ter que dar diariamente um osso
A um bicho vil, a um feio cão imundo».

Gosto dos animais, porém prefiro
A essa raça baixa e aduladora
Um alazão inglês, de sela ou tiro,
Ou uma gata branca sismadora.

Mal respirei, porém! Quando dormia
E a negra noite amortalhava tudo
Sentí que à minha porta alguem batia:
Fui ver quem era. Abrí. Era Veludo.

Saltou-me às mãos, lambeu-me os pés ganindo,
Farejou toda a casa satisfeito;
E - de cansado - foi rolar dormindo
Como uma pedra, junto do meu leito.

Praguejei furioso. Era execrável
Suportar esse hóspede importuno
Que me seguia como o miserável
Ladrão, ou como um pérfido gatuno.

E resolvi-me enfim. Certo, é custoso
Dizê-lo em alta voz e confessá-lo
Para livrar-me desse cão leproso
Havia um meio só: era matá-lo

Zunia a asa fúnebre dos ventos;
Ao longe o mar na solidão gemendo
Arrebentava em uivos e lamentos...
De instante em instante ia o tufão crescendo.

Chamei Veludo; ele seguia-me. Entanto
A fremente borrasca me arrancava
Dos frios ombros o revolto manto
E a chuva meus cabelos fustigava.

Despertei um barqueiro. Contra o vento,
Contra as ondas coléricas vogamos;
Dava-me força o torvo pensamento:
Peguei num remo - e com furor remamos

Veludo à proa olhava-me choroso
Como o cordeiro no final momento,
Embora! Era fatal! Era forçoso
Livrar-me enfim desse animal nojento.

No largo mar ergui-o nos meus braços
E arremessei-o às ondas de repente...
Ele moveu gemendo os membros lassos
Lutando contra a morte. Era pungente.

Voltei à terra - entrei em casa. O vento
Zunia sempre na amplidão profundo.
E pareceu-me ouvir o atroz lamento
De Veludo nas ondas moribundo.

Mas ao despir dos ombros meus o manto
Notei - oh grande dor! - haver perdido
Uma relíquia que eu prezava tanto!
Era um cordão de prata: - eu tinha-o unido

Contra o meu coração constantemente
E o conservava no maior recato
Pois minha mãe me dera essa corrente
E, suspenso à corrente, o seu retrato.

Certo caíra além no mar profundo,
No eterno abismo que devora tudo;
E foi o cão, foi esse cão imundo
A causa do meu mal! Ah, se Veludo

Duas vidas tivera - duas vidas
Eu arrancara àquela besta morta
E àquelas vis entranhas corrompidas.
Nisto senti uivar à minha porta.

Corri - abri... Era Veludo! Arfava:
Estendeu-se a meus pés, - e docemente
Deixou cair da boca que espumava
A medalha suspensa da corrente.

Fora crível, oh Deus? - Ajoelhado
Junto do cão - estupefato, absorto,
Palpei-lhe o corpo: estava enregelado;
Sacudi-o, chamei-o! Estava morto!




Luis Guimarães