terça-feira, 13 de agosto de 2019

Com pé e cabeça










Após a guerra,
é bom deixar tudo melhor do que era.
As pessoas esquecem: 
por si mesmas as coisas não se mexem. 
Melhor tirar todo esse lixo,
assim os carros passarão em seu cortejo mortiço.


Abram caminho
pela lama de sangue,
entre as cinzas rubras,
as molas dos sofás vermelhos,
os cacos de vidro rubi,
os trapos carmim!


Tirem este poste daqui,
levantem as paredes aqui,
envidracem as janelas ali,
ponham as portas em seu devido lugar!


Essas tarefas não dão um bom documentário
e as equipes de TV
precisam de fatos novos para sobreviver. 
Nós não, nossa vida tem pontes,
estações de trem de ida e volta.


Arregaçamos o tempo
e puímos mangas de camisas
em movimento.
O homem da vassoura quase sem cerdas
varre a memória
e lembra como foram sangrentos os fatos.


Um passante ouve e assente
com a cabeça, a salvo.
Os mais próximos acham
que a história está mal contada
e bocejam seu tédio atávico.


Aqui e ali, outros desenterram velhas evidências
e arrastam-nas para o lixo.
Os que sabiam em detalhes
cederam lugar aos que sabem pouco.
E aos que sabem menos ainda.
E àqueles que nada sabem.



Até que alguém, distraidamente,
sobre a grama que já cobriu causas e efeitos,
deite-se com um capim nos lábios,
o olhar perdido nas nuvens
a sonhar novamente com estrelas!




Wisława Szymborska
por antonio thadeu wojciechowski