Por Vanessa Barbara
A megalivraria é a nova biblioteca. Muita gente almoça às pressas e
deixa de escovar os dentes só para poder passar mais tempo lendo
confortavelmente num pufe de livraria. Comprar o livro, nunca — a graça é
ler um trecho por dia, pular o almoço, disputar com outros dois
clientes o único volume em estoque e fazer anotações teóricas num
caderninho.
O típico leitor de livraria é aquele que traz seu próprio marcador
(ou pega emprestado no caixa do estabelecimento) e esconde os livros
ainda não concluídos em lugares aleatórios, a fim de garantir seu
paradeiro no dia seguinte. Para esse indivíduo, é muito difícil lidar
com a realidade de que o seu livro pode ser vendido de repente, antes
que ele chegue ao final, e ainda por cima para alguém que não pretende
lê-lo. Ou que não vai lhe dar o devido valor. Por isso, o leitor
inveterado recorre a associações mnemônicas a fim de recordar onde
deixou o tomo dois de Guerra e paz: na estante de viagens, atrás do guia da Coreia (nota mental: parei na página 234). As benevolentes, de Jonathan Littell, pode ser oculto na área de estudos religiosos. Já a edição comentada de Alice no País das Maravilhas
ficaria na seção de moda, ao lado de um livro sobre chapéus. Ou na de
literatura brasileira, junto a um romance do Paulo Coelho. (Advertência:
a associação com o Chapeleiro Maluco e o Coelho Branco é um tanto
manjada e pode ser de fácil decodificação para os vendedores mais
calejados.)
A livraria é mais agradável do que a biblioteca por conter uma
miríade de poltronas, cadeiras e almofadões com níveis variados de
comodidade — muitos leitores caem no sono e são acordados no fim do
expediente por um funcionário fechando a loja. Há quem diga que
encontrou a cura da insônia na Livraria Cultura do Conjunto Nacional,
outros preferem um lugar mais intimista como a Livraria da Vila para
pegar no sono lendo contos de fadas. A Saraiva Mega Store do Shopping
Center Norte é recomendada para quem deseja comentar passagens de livros
com desconhecidos.
As livrarias possuem os últimos lançamentos e todas as obras têm
cheiro de novas. Além disso, nas lojas não é preciso deixar a bolsa no
guarda-volumes e é muito difícil levar bronca, ao contrário do que
acontece nas bibliotecas. Nenhum funcionário segue o leitor perguntando
incessantemente o que ele está procurando, nem há proibição expressa de
vasculhar livros por conta própria, vagando pelas prateleiras e tirando
volumes do lugar. Isso, como todos sabem, é severamente punido nas
bibliotecas públicas, onde o que menos se aprecia é a existência de
leitores.
A habilidade do leitor de livraria é a de ler sem deixar vestígios,
sem machucar as páginas ou provocar dobras desagradáveis. Ele às vezes
leva um laptop para fazer anotações enquanto avança e para pesquisar o
significado das palavras, caso esteja com preguiça de ir à seção de
dicionários. Ri em voz alta e pede silêncio se alguém está conversando
nas proximidades. Quando devora um thriller policial e está nas últimas
páginas — o detetive prestes a desvendar o culpado —, pode se incomodar
com a interrupção de um vendedor pedindo licença para mostrar o título a
um cliente interessado. “Só um segundo”, diz, correndo a página com os
olhos. “Eu sabia! Desde o começo!” e, levantando-se: “Você precisa ler
isto aqui. É muito bom”. Entrega o volume nas mãos do funcionário,
agradecendo e dando boa tarde a todos. No dia seguinte, volta para pedir
indicações de títulos policiais naquela mesma linha.
Há quem afirme ter lido nessas condições todos os sete volumes de “As
crônicas de gelo e fogo”, de George R. R. Martin (o primeiro tomo está
na seção de literatura infantil, perto de um conhecido clássico da Companhia das Letrinhas) e Caninos brancos, de Jack London (na estante de livros técnicos, atrás de Onze técnicas avançadas para clareamento dental). No mesmo setor se encontra O deserto dos tártaros, de Dino Buzatti, e a biografia de Tiradentes, ambos na diagonal, bem no fundo da estante.
Os banheiros desses estabelecimentos também costumam ser melhores do
que os de bibliotecas, mas infelizmente não é possível levar um livro
para acompanhá-lo lá dentro — há detectores na entrada.
Nas megalivrarias também há cafés, de modo que o leitor mais folgado
pode apreciar um bolo de morango com suco enquanto se dedica à fruição
de algo que não vai comprar. Vez ou outra há distribuição gratuita de
champanhe, vinho e amendoim nos vernissages de lançamento, o que pode
ser um incentivo a mais para ler a obra da noite, tirando dúvidas in loco com
o autor. Ou para pedir emprestada uma das cadeiras do anfitrião (“Eu
não vou incomodar, só estou aqui terminando o capítulo”), lançando assim
a moda das noites de autógrafo com um autor e um leitor, numa espécie
de showroom do produto.
Duas regras de etiqueta para o leitor de livraria: levar a própria
garrafa térmica de casa não é recomendado, tampouco fica bem tirar os
sapatos para maior conforto.
* * * * *
ps 1. Leitura recomendada: “Leitor de livraria”, no Blog do Paulo Velho, que serviu de inspiração para este post.
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