domingo, 17 de março de 2013

A lágrima







Manhã de Junho ardente.
Uma encosta escavada, 
Seca, deserta e nua, à beira
 d'uma estrada. 

Terra ingrata,
onde a urze a custo desabrocha, 
Bebendo o sol, comendo o pó, 
mordendo a rocha. 

Sobre uma folha hostil
duma figueira brava, 
Mendiga que se nutre 
a pedregulho e lava, 

A aurora desprendeu,
compassiva e divina, 
Uma lágrima etérea, 
enorme e cristalina. 

Lágrima tão ideal, tão límpida,
 que ao vê-la, 
De perto era um diamante
 e de longe uma estrela. 

Passa um rei com o seu cortejo de espavento, 
Elmos, lanças, clarins, trinta pendões ao vento. 
- "No meu diadema, disse o rei, quedando a olhar, 
Há safiras sem conta e brilhantes sem par,  

"Há rubins orientais,
 sangrentos e doirados, 
Como beijos d'amor, 
a arder, cristalizados. 


"Há pérolas que são gotas 
de mágoa imensa, 
Que a lua chora e verte,
 e o mar gela e condensa.  


"Pois, brilhantes, rubins
 e pérolas de Ofir,
Tudo isso eu dou, 
e vem, ó lágrima, fulgir  

"Nesta c'roa orgulhosa,
 olímpica, suprema, 
Vendo o Globo a teus pés 
do alto do teu diadema!" 

E a lágrima celeste,
 ingénua e luminosa, 
Ouviu, sorriu, tremeu, 
e quedou silenciosa. 

Couraçado de ferro,
épico e deslumbrante,  
Passa no seu ginete
 um cavaleiro andante.  

E o cavaleiro diz 
à lágrima irisada: 
"Vem brilhar, por Jesus,
 na cruz da minha espada! 

"Far-te hei relampejar,
de vitória em vitória, 
Na Terra Santa, à luz da Fé, 
ao sol da Glória!  

"E à volta há-de guardar-te
 a minha noiva, ó astro, 
Em seu colo auroreal 
de rosa e de alabastro. 

"E assim alumiarás
com teu vivo esplendor 
Mil combates de heróis
 e mil sonhos d'amor!"  

E a lágrima celeste,
 ingénua e luminosa,  
Ouviu, sorriu, tremeu 
e quedou silenciosa. 

***

Montado numa mula escura,
 de caminho, 
Passa um velho judeu, 
avarento e mesquinho. 

Mulas de carga atrás
 levavam-lhe o tesoiro: 
Grandes arcas de cedro, 
abarrotadas d'oiro. 

E o velhinho andrajoso
 e magro como um junco, 
O crânio calvo, o olhar febril,
 o bico adunco,  

Vendo a estrela, exclamou: 
"Oh Deus, que maravilha! 
Como ela resplandece, 
e tremeluz, e brilha! 

"Com meu oiro em montão
podiam-se comprar 
Os impérios dos reis
 e os navios do mar,  

"E por esse diamante
 esplêndido trocara 
Todo o meu oiro imenso
 a minha mão avara!" 

E a lágrima celeste,
 ingénua e luminosa, 
Ouviu, sorriu, tremeu, 
e quedou silenciosa. 

***
Debaixo da figueira, 
então, um cardo agreste, 
Já ressequido, 
disse à lágrima celeste:  

"A terra onde o lilaz 
e a balsamina medra 
Para mim teve sempre 
um coração de pedra. 

"Se a queixar-me, ergo ao céu
os braços por acaso, 
O céu manda-me em paga 
o fogo em que me abraso. 

"Nunca junto de mim, 
ulcerado de espinhos, 
Ouvi trinar, gorgear 
a música dos ninhos. 

"Nunca junto de mim
ranchos de namoradas 
Debandaram, cantando, 
em noites estreladas... 

"Voa a ave no azul
e passa longe o amor, 
Porque ai! Nunca dei sombra 
e nunca tive flor!... 

"Ó lágrima de Deus,
ó astro, ó gota d'água, 
Cai na desolação 
desta infinita mágoa!"  

E a lágrima celeste,
 ingénua e luminosa, 
Tremeu, tremeu, tremeu... 
e caíu silenciosa!... 

***
E algum tempo depois 
o triste cardo exangue, 
Reverdecendo, dava uma flor 
côr de sangue,  

Dum roxo macerado, 
e dorido, e desfeito, 
Como as chagas que tem 
Nosso Senhor no peito... 

E ao cálix virginal
da pobre flor vermelha 
Ia buscar, zumbindo, 
o mel doirado a abelha!...




Guerra Junqueiro



















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